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NIS2 na indústria de manufatura: implicações estratégicas e oportunidades competitivas além da conformidade

Introdução

A Diretiva NIS2 (Network and Information Security Directive 2), formalizada como Diretiva (UE) 2022/2555, representa um marco regulatório fundamental na União Europeia, visando elevar o nível comum de cibersegurança em 18 setores críticos. Esta diretiva substitui a NIS1 (Diretiva 2016/1148), que se mostrou insuficiente diante do cenário de ameaças cibernéticas em constante evolução. A transposição da NIS2 para a legislação nacional dos Estados-Membros deveria ter ocorrido até 17 de outubro de 2024, com a revogação da NIS1 a partir de 18 de outubro de 2024.

O setor de manufatura, historicamente visto como menos exposto a riscos cibernéticos do que setores como finanças ou energia, está agora no epicentro da transformação digital e, consequentemente, da superfície de ataque cibernético. A crescente interconectividade entre sistemas de Tecnologia da Informação (TI) e Tecnologia Operacional (TO), a automação industrial e a dependência de cadeias de suprimentos complexas tornam a cibersegurança uma preocupação central para a continuidade dos negócios e a resiliência operacional. Relatórios recentes sublinham a vulnerabilidade do setor: dados da Dragos Intelligence de Q1 2025 revelam que 68% de todos os incidentes de ransomware industrial impactaram diretamente empresas de manufatura.

Mesmo para empresas de manufatura que não são diretamente obrigadas a cumprir a NIS2 – seja por seu porte (pequenas e médias empresas, PMEs, que não são consideradas críticas) ou por sua localização fora da UE – a compreensão e, idealmente, a adoção voluntária de seus princípios são imperativas. A diretiva não se limita às fronteiras da UE, impactando empresas globalmente que fornecem serviços ou produtos a entidades reguladas na Europa. Ignorar a NIS2 pode resultar em perda de contratos, exclusão de cadeias de suprimentos e desvantagem competitiva em um mercado cada vez mais consciente dos riscos cibernéticos.

A NIS2 não se limita a impor obrigações diretas a entidades classificadas como “essenciais” ou “importantes”; ela estabelece um requisito fundamental para que essas entidades avaliem e garantam a segurança cibernética de seus fornecedores e parceiros de terceiros. Isso significa que uma empresa de manufatura menor, que não atinge os limiares de tamanho ou setor para ser diretamente regulada pela NIS2, ainda assim será compelida a adotar medidas de segurança compatíveis com a NIS2 se desejar continuar a fazer negócios com clientes maiores na UE que são regulados. Este cenário cria uma “conformidade de fato” impulsionada pelo mercado, onde a cibersegurança se torna um pré-requisito contratual e de negócios, não apenas uma obrigação regulatória. O risco de perder clientes e ser excluído de cadeias de suprimentos lucrativas serve como um poderoso incentivo para a adoção voluntária, transformando a cibersegurança de um custo em um facilitador de negócios.

A adoção dos princípios da NIS2, mesmo para não-obrigados, deixa de ser uma opção e torna-se um imperativo estratégico para garantir a continuidade dos negócios, proteger a reputação e atrair investimentos. A “ciber-maturidade” emerge como um ativo intangível que agrega valor à empresa, reduzindo riscos operacionais e reputacionais e aumentando a garantia de continuidade dos negócios.

Principais Elementos da NIS2

A Diretiva NIS2 foi concebida para fortalecer a resiliência cibernética da União Europeia, e seus objetivos centrais podem ser sumarizados em três pilares:

  • Aumentar os Níveis de Resiliência Cibernética: Exigir que entidades essenciais e importantes implementem medidas robustas de gestão de riscos cibernéticos, incluindo controles de segurança baseados em risco, procedimentos de resposta a incidentes e planos de continuidade de negócios.
  • Garantir Padrões de Cibersegurança Uniformes: Harmonizar os requisitos de segurança em todos os Estados-Membros da UE, eliminando inconsistências e “elos fracos”. Isso inclui a imposição de multas substanciais por não conformidade e a responsabilização da alta gerência.
  • Melhorar a Resposta a Ameaças e o Compartilhamento de Informações: Facilitar a cooperação e a troca de informações entre os Estados-Membros e com a Agência da UE para a Cibersegurança (ENISA), através de redes como os CSIRTs (Computer Security Incident Response Teams) e o EU-CyCLONe. Isso visa uma resposta mais coordenada e eficaz a incidentes cibernéticos transfronteiriços.

Requisitos Relevantes para o Setor de Manufatura

O setor de manufatura é classificado como uma “entidade importante” sob a NIS2, embora subgrupos específicos (como fabricantes de produtos farmacêuticos e biotecnológicos, dispositivos médicos, e certos fabricantes de componentes para infraestruturas críticas) possam ser considerados “essenciais”. As obrigações para as entidades de manufatura incluem:

  • Governança e Responsabilização: Designar um responsável pela conformidade com a NIS2 e garantir que a liderança gerencie ativamente os riscos de cibersegurança e da cadeia de suprimentos.
  • Gestão e Mitigação de Riscos: Implementar processos documentados e repetíveis para avaliar e gerenciar riscos operacionais e de terceiros. Isso inclui políticas de análise de risco e segurança de sistemas de informação, segurança de aquisição/desenvolvimento/manutenção de sistemas, gestão de vulnerabilidades, segurança de recursos humanos, controle de acesso e gestão de ativos .
  • Segurança da Cadeia de Suprimentos: Avaliar a resiliência cibernética de todos os fornecedores críticos, incluindo vendedores e provedores de serviços, e incorporar medidas de cibersegurança em contratos.
  • Detecção e Relato de Incidentes: Detectar incidentes cibernéticos e reportá-los às autoridades nacionais dentro dos prazos estabelecidos.
  • Planejamento de Continuidade de Negócios: Desenvolver e testar planos de resposta a incidentes e recuperação, incluindo gestão de backups e recuperação de desastres.
  • Prontidão para Auditoria: Manter evidências documentadas de todas as atividades de gestão de riscos para inspeções regulatórias.
  • Criptografia e Autenticação: Utilizar criptografia e autenticação multifator (MFA) ou contínua, sistemas de comunicação seguros.
  • Higiene Cibernética e Treinamento: Promover boas práticas de higiene cibernética e oferecer treinamento regular de conscientização em cibersegurança para todos os funcionários, incluindo a alta gerência.

Impactos Potenciais no Setor de Manufatura

A Diretiva NIS2, ao incluir explicitamente a indústria de manufatura em seu escopo como uma “entidade importante”, projeta impactos significativos em todo o setor, tanto para as empresas diretamente obrigadas quanto para aquelas que, a princípio, não se enquadram nos critérios de conformidade compulsória. A crescente digitalização e interconectividade dos processos industriais tornam a cibersegurança uma questão central, e a NIS2 atua como um catalisador para a elevação do nível de maturidade cibernética em toda a cadeia de valor.

Para Empresas Diretamente Abrangidas pela NIS2:

As empresas de manufatura que se qualificam como “entidades importantes” sob a NIS2 enfrentarão a necessidade de implementar um conjunto robusto de medidas de gestão de riscos de cibersegurança e de notificação de incidentes. Isso implica investimentos em tecnologia, processos e pessoal qualificado. Os impactos incluem:

  • Investimento em Cibersegurança: Alocação de recursos financeiros e humanos para fortalecer defesas cibernéticas, incluindo a adoção de novas ferramentas, aprimoramento de infraestrutura e treinamento de equipes.
  • Revisão de Processos Internos: Adaptação de políticas e procedimentos para atender aos requisitos da NIS2, como a implementação de análises de risco regulares, planos de continuidade de negócios e protocolos de resposta a incidentes.
  • Aumento da Responsabilidade: A diretiva impõe maior responsabilidade à alta gerência pela supervisão e aprovação das medidas de cibersegurança, com a possibilidade de sanções significativas em caso de não conformidade.
  • Notificação Compulsória de Incidentes: Obrigação de reportar incidentes de cibersegurança significativos às autoridades competentes em prazos curtos, o que exige sistemas de detecção e resposta eficientes.
  • Auditorias e Fiscalização: Sujeição a auditorias e fiscalizações por parte das autoridades nacionais de cibersegurança para verificar a conformidade.

Interdependência da Cadeia de Suprimentos, Automação Industrial e Sistemas Ciberfísicos (ICS/OT)

A indústria de manufatura é caracterizada por uma complexa teia de interdependências. A digitalização aprofundou essa interconexão, especialmente entre:

  • Cadeia de Suprimentos: A globalização e a otimização de processos levaram a cadeias de suprimentos altamente interdependentes. Um incidente cibernético em um elo da cadeia pode ter um efeito cascata, interrompendo a produção em vários fabricantes. Por exemplo, um ataque de ransomware a um único fornecedor pode paralisar a produção de grandes fabricantes automotivos em diferentes continentes.
  • Automação Industrial: A Indústria 4.0 impulsionou a automação de processos, com sistemas interconectados controlando desde a linha de produção até a gestão de estoque. A segurança desses sistemas é crucial para a continuidade operacional. Vulnerabilidades em sistemas automatizados podem levar a paralisações na produção ou até mesmo a danos físicos.
  • Sistemas Ciberfísicos (ICS/OT): A convergência da Tecnologia da Informação (TI) e da Tecnologia Operacional (TO) resultou em sistemas ciberfísicos que controlam equipamentos e processos físicos. Ataques a ICS/OT podem causar danos físicos, interrupções na produção e riscos à segurança humana. O ataque ao Colonial Pipeline nos EUA em 2021, embora não seja de manufatura, destacou as graves consequências de comprometimentos de sistemas OT.

A NIS2 reconhece essa interdependência e exige que as empresas considerem a segurança da cadeia de suprimentos e a proteção de seus sistemas de controle industrial como partes integrantes de sua estratégia de cibersegurança.

Riscos Típicos e Como a NIS2 os Aborda

O setor de manufatura enfrenta riscos cibernéticos específicos, que a NIS2 visa mitigar:

  • Ransomware Visando OT: Ataques de ransomware que visam sistemas de Tecnologia Operacional (OT) podem paralisar a produção, levando a perdas financeiras massivas. A NIS2 exige planos de continuidade de negócios, backups e estratégias de recuperação para minimizar o impacto de tais ataques.
  • Espionagem Industrial: O roubo de propriedade intelectual, designs de produtos e segredos comerciais é uma ameaça constante. A NIS2 impõe a proteção de dados sensíveis por meio de criptografia, controle de acesso e segurança de recursos humanos.
  • Falhas de Resiliência Digital: A incapacidade de um sistema ou organização de resistir e se recuperar de um incidente cibernético. A NIS2 aborda isso por meio de requisitos para gerenciamento de incidentes, planos de continuidade e avaliações regulares das medidas de segurança. Essa abordagem proativa visa construir resiliência inerente.
  • Ataques à Cadeia de Suprimentos: Como destacado pelo ataque SolarWinds, comprometer um único fornecedor pode conceder acesso a inúmeras organizações a jusante. A NIS2 exige que as empresas avaliem e mitiguem os riscos de cibersegurança de seus fornecedores, garantindo que a segurança seja considerada em toda a cadeia de valor.
  • Ataques a IoT Industrial: Dispositivos conectados na manufatura podem ser pontos de entrada vulneráveis. A NIS2 promove a segurança desde o design e a implementação de medidas de segurança robustas para esses dispositivos, reconhecendo a superfície de ataque em expansão das fábricas inteligentes.

Ao abordar sistematicamente esses riscos, a NIS2 visa não apenas proteger empresas individuais, mas também fortalecer a resiliência de todo o ecossistema de manufatura europeu, garantindo a continuidade operacional e a proteção de ativos críticos em um ambiente digital cada vez mais desafiador.

Recomendações Práticas

A transição para um ambiente de manufatura mais seguro e resiliente, em linha com os princípios da NIS2, exige uma abordagem estruturada e proativa. Para as empresas de manufatura, sejam elas diretamente obrigadas ou buscando as vantagens estratégicas da adoção voluntária, as seguintes recomendações práticas podem guiar o processo de implementação:

Melhores Práticas e Etapas para Implementar os Princípios da NIS2

  1. Realizar uma Avaliação Abrangente de Riscos: O ponto de partida é compreender o cenário de risco atual. Isso inclui identificar ativos críticos (TI e OT), avaliar vulnerabilidades, analisar ameaças e determinar o impacto potencial de um incidente. A avaliação deve ser contínua e adaptada ao ambiente de ameaças em evolução. Este é um passo fundamental enfatizado por frameworks como o NIST CSF.
  2. Desenvolver e Implementar Políticas de Segurança Robustas: Com base na avaliação de riscos, criar e aplicar políticas de cibersegurança claras que cubram todos os aspectos da operação, desde o acesso à rede até o uso de dispositivos pessoais e a segurança da cadeia de suprimentos. Essas políticas devem ser revisadas e atualizadas regularmente.
  3. Fortalecer a Segurança da Cadeia de Suprimentos: Mapear a cadeia de suprimentos e avaliar a postura de cibersegurança de fornecedores e parceiros. Implementar cláusulas contratuais que exijam a adesão a padrões de segurança e realizar auditorias regulares. Isso é crítico dada a interconexão da manufatura global.
  4. Investir em Segurança de Sistemas de Controle Industrial (ICS/OT): Dada a criticidade dos sistemas OT na manufatura, é essencial implementar medidas de segurança específicas, como segmentação de rede, monitoramento contínuo, gerenciamento de patches e controle de acesso rigoroso. Padrões como ISO/IEC 62443 fornecem orientação detalhada para isso.
  5. Implementar um Plano de Resposta a Incidentes: Desenvolver e testar regularmente um plano detalhado para detectar, conter, erradicar e recuperar-se de incidentes de cibersegurança em tempo hábil. Isso inclui definir funções e responsabilidades, comunicação interna e externa, e procedimentos para notificar as autoridades.
  6. Promover a Conscientização e o Treinamento: A ciber-higiene é fundamental. Treinar regularmente todos os funcionários sobre as melhores práticas de cibersegurança, como identificar ataques de phishing, usar senhas fortes e proteger informações confidenciais. O erro humano continua sendo uma vulnerabilidade significativa.
  7. Adotar Autenticação Multifator (MFA): Implementar MFA para acesso a sistemas e dados críticos, adicionando uma camada extra de segurança além das senhas. Esta é uma prática recomendada amplamente reconhecida em todos os setores.
  8. Realizar Auditorias e Testes de Penetração Regulares: Avaliar a eficácia das medidas de segurança por meio de auditorias independentes e testes de penetração para identificar e remediar vulnerabilidades antes que possam ser exploradas por invasores.
  9. Garantir a Continuidade dos Negócios e a Recuperação de Desastres: Desenvolver e testar planos de continuidade de negócios e recuperação de desastres para minimizar o tempo de inatividade e o impacto financeiro em caso de um incidente grave. Isso inclui estratégias robustas de backup.

Conclusão

A Diretiva NIS2 emerge como um catalisador fundamental para elevar os padrões de cibersegurança na União Europeia, e sua inclusão explícita da indústria de manufatura ressalta a criticidade do setor para a economia e a sociedade. Conforme detalhado neste artigo, a NIS2 impõe obrigações rigorosas às entidades diretamente abrangidas, mas, mais importante, estabelece um novo paradigma para a gestão de riscos cibernéticos que se estende por toda a cadeia de valor da manufatura.

A tese central defendida é que a adoção dos princípios da NIS2, mesmo que voluntária, representa um diferencial estratégico inegável para as empresas de manufatura. Longe de ser um mero custo de conformidade, o investimento em cibersegurança alinhado com a diretiva se traduz em benefícios tangíveis, como a melhoria da postura de segurança e da maturidade organizacional, a redução de riscos inerentes a cadeias de suprimentos complexas e a obtenção de uma vantagem competitiva significativa em contratos com empresas reguladas.

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Eduardo Dionisio de Vasconcelos
Eduardo Dionisio de Vasconcelos
Head of Global Information Security em empresa multinacional, com forte atuação estratégica e operacional. Executa estratégias abrangentes de segurança da informação e implementa soluções tecnológicas alinhadas às necessidades do negócio. Promove a educação e a conscientização em segurança dentro da organização e supervisiona programas de controles baseados nas melhores práticas das normas ISO 27001, NIST e TISAX.
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