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sexta-feira, setembro 26, 2025
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O elo mais fraco ou o pilar mais forte? Repensando o risco humano na cibersegurança

No cenário complexo e em constante evolução da cibersegurança, existe um paradoxo persistente: apesar dos investimentos maciços em tecnologia de ponta, firewalls robustos e sistemas de detecção avançados, a vasta maioria dos incidentes de segurança cibernética ainda tem uma coisa em comum: o fator humano. O colaborador, muitas vezes inadvertidamente, torna-se a porta de entrada para ataques sofisticados, seja por um clique descuidado, uma senha reutilizada ou a falta de discernimento em um momento de pressão.

Este artigo não se propõe a criticar a conscientização em cibersegurança; muito pelo contrário, ela é fundamental. No entanto, questiona a eficácia de muitos dos modelos atuais. Minha experiência de mais de duas décadas em liderança estratégica de segurança em grandes corporações me levou a uma conclusão inegável: a simples difusão de “melhores práticas” e treinamentos genéricos já não basta.

Continuamos a operar com o “achismo” sobre as reais necessidades e vulnerabilidades de nossos funcionários, sem uma base sólida de dados para direcionar nossos esforços. Isso não só é ineficaz como também desperdiça recursos preciosos e cultiva uma falsa sensação de segurança.

É hora de virar a página. A verdadeira lacuna não está na ausência de programas, mas na falta de uma compreensão profunda e mensurável do “risco humano” dentro da organização. Precisamos parar de inferir e começar a entender. Este artigo provocará a reflexão sobre como podemos transformar o colaborador, de um potencial elo fraco, no pilar mais forte de nossa defesa cibernética, adotando uma abordagem estratégica, baseada em dados e centrada nas pessoas.

A ilusão da cultura de segurança genérica

A cena é familiar em muitas empresas: anualmente, os colaboradores recebem convites para treinamentos obrigatórios de cibersegurança, são submetidos a simulações de phishing e bombardeados com e-mails informativos sobre as últimas ameaças. Embora bem-intencionadas, essas iniciativas frequentemente se tornam um mero “check-box” a ser preenchido, com baixa aderência e impacto limitado na redução de riscos efetivos.

O paradigma atual da conscientização de segurança muitas vezes peca por sua abordagem “one-size-fits-all”. Um treinamento desenvolvido para a equipe de TI dificilmente terá a mesma relevância para a equipe de vendas ou para a área de recursos humanos, cujas interações com a tecnologia e exposição a riscos são completamente diferentes. A falta de contextualização torna a informação abstrata e de difícil aplicação prática.

Além disso, muitas campanhas de conscientização adotam um tom excessivamente punitivo, focando nos erros e nas consequências negativas, em vez de educar e empoderar. Isso gera ressentimento e desengajamento, transformando a segurança em um fardo em vez de uma responsabilidade compartilhada. As métricas de sucesso se limitam, na maioria das vezes, a taxas de conclusão de cursos ou número de cliques em e-mails de phishing simulados – dados superficiais que pouco revelam sobre a mudança real de comportamento ou a efetiva redução do risco.

As consequências desse “achismo” são claras: orçamentos de segurança alocados de forma ineficiente, funcionários céticos ou desinteressados, e uma cultura de segurança que, na prática, não se traduz em resiliência robusta contra as crescentes ameaças cibernéticas. Estamos construindo castelos de areia, esperando que a maré não suba.

Decifrando o “Risco Humano”: o que realmente significa?

Para transcender o modelo atual, precisamos primeiramente redefinir o que entendemos por “risco humano” em cibersegurança. Não se trata apenas do erro primário de “clicar no link errado” ou de “cair no golpe do CEO”. O risco humano é uma tapeçaria complexa, tecida por múltiplos fios que vão muito além da simples negligência ou ignorância.

Ele abrange:

  • Vulnerabilidades Comportamentais: A pressa em fechar um negócio, a sobrecarga de trabalho que leva à distração, o excesso de confiança que ignora alertas, a complacência com políticas de segurança consideradas “burocráticas”. Todos esses são fatores psicológicos e situacionais que influenciam a tomada de decisão em momentos críticos.
  • Fatores Psicológicos: Estresse, fadiga, pressão por resultados e até mesmo vieses cognitivos podem comprometer a capacidade de um indivíduo de identificar e reagir adequadamente a uma ameaça.
  • Fatores Contextuais: Ferramentas inadequadas ou excessivamente complexas, processos morosos que incentivam desvios, falta de recursos ou até mesmo um ambiente de trabalho desmotivador podem levar os colaboradores a buscar atalhos que comprometem a segurança.
  • Intenção: É crucial diferenciar o erro não intencional de um comportamento malicioso. Enquanto o primeiro exige educação e suporte, o segundo demanda monitoramento e ações disciplinares, ou mesmo legais.

Cada colaborador é um vetor de risco único, moldado por sua função, nível de acesso a informações sensíveis, conhecimento técnico, personalidade e, fundamentalmente, pelo ambiente de trabalho em que está inserido. Entender essa complexidade exige que mergulhemos nos princípios da psicologia comportamental para compreender por que as pessoas agem como agem e, a partir daí, como podemos influenciar positivamente esses comportamentos para fortalecer a postura de segurança.

A imperativa da mensuração: conhecendo nossas pessoas

Sem medição, não há gestão. Esta máxima se aplica com redobrada força à gestão do risco humano. Permanecer no terreno do “achismo” é abdicar da capacidade de gerenciar proativamente uma das maiores fontes de risco para a organização. A mensuração é o catalisador que transforma suposições em dados acionáveis, permitindo intervenções cirúrgicas e eficazes.

Mas o que, de fato, devemos medir?

  • Exposição ao Risco: Além de simulações de phishing, precisamos entender a frequência e o tipo de interações de alto risco que os colaboradores encontram. Quantos e-mails suspeitos são reportados? Quantos downloads indevidos são bloqueados? Qual é o perfil de navegação em sites de risco?
  • Conhecimento e Habilidades: Testes práticos contextualizados à função do indivíduo, simulações direcionadas a cenários reais de trabalho e avaliações de desempenho podem revelar lacunas de conhecimento e habilidades em áreas críticas.
  • Atitudes e Percepções: Pesquisas de clima de segurança, entrevistas focadas e grupos de discussão podem fornecer insights valiosos sobre a percepção dos colaboradores em relação à segurança, suas preocupações, barreiras e sugestões.
  • Comportamentos Reais: A análise de logs de sistemas, relatórios de incidentes detalhados e o engajamento com ferramentas de segurança (e.g., uso de autenticação multifator, gerenciadores de senhas) revelam padrões de comportamento.
  • Perfil de Risco por Departamento/Função: É essencial identificar quais departamentos ou funções estão mais expostos a determinados tipos de ameaça ou apresentam maiores vulnerabilidades, permitindo direcionar recursos de forma mais inteligente.

As ferramentas para essa mensuração são variadas e devem ser utilizadas de forma integrada. Simulações de phishing devem ir além do simples “clique”; elas precisam avaliar o comportamento subsequente (o usuário relatou o incidente? Inseriu credenciais? Tentou abrir o anexo em outro dispositivo?). A análise de incidentes deve aprofundar-se no porquê da falha humana, e não apenas no o quê. Questionários e entrevistas qualitativas são indispensáveis para entender as motivações e as barreiras que impedem a adoção de práticas seguras.

Da mensuração à intervenção dirigida: o caminho para a resiliência

Uma vez que tenhamos os dados, o desafio se transforma em ação. A mensuração do risco humano não é um fim em si mesma, mas o alicerce para a criação de programas de conscientização e capacitação que são, de fato, transformadores. É a transição do genérico para o personalizado.

Com base nos dados coletados, podemos desenvolver:

  • Programas Personalizados de Micro-aprendizado: Em vez de treinamentos extensos e anuais, entregamos conteúdo curto, relevante e focado, no momento certo e para o público certo. Se um departamento específico demonstra vulnerabilidade a ataques de engenharia social via LinkedIn, o treinamento deve ser direcionado e prático para aquele contexto.
  • Gamificação e Engajamento: Transformar o aprendizado em uma experiência interativa e recompensadora pode aumentar significativamente o engajamento. Desafios, pontuações e reconhecimento podem motivar os colaboradores a internalizar e aplicar as práticas de segurança.
  • Cenários Reais e Práticos: Os treinamentos devem simular as situações que os funcionários realmente enfrentam em seu dia a dia, permitindo-lhes praticar e desenvolver habilidades de detecção e resposta em um ambiente seguro.
  • Mentoria e Campeões de Segurança: Identificar e capacitar colaboradores que demonstram aptidão e paixão por cibersegurança para atuarem como “campeões” ou “embaixadores” em suas equipes pode criar uma rede de suporte e disseminação de boas práticas orgânica e eficiente.

A comunicação estratégica é outro pilar. Os riscos e as soluções devem ser apresentados de forma clara, objetiva e que ressoe com os colaboradores, sem alarmismo. A colaboração com as áreas de Recursos Humanos e Comunicação é vital para garantir que a mensagem seja transmitida de forma eficaz e que se alinhe à cultura geral da empresa. É um processo contínuo de avaliação, ajuste e otimização. Não há uma solução mágica, mas um compromisso constante com a melhoria.

A perspectiva executiva: transformando risco humano em valor de negócio

Para um CISO, comunicar a importância da gestão do risco humano à alta direção e ao conselho de administração é um imperativo estratégico. A linguagem deve transcender o jargão técnico e focar no impacto direto nos objetivos de negócio.

Aqui, o CISO atua não apenas como um guardião técnico, mas como um estratega que entende e gerencia a dimensão humana da segurança. É preciso demonstrar como uma abordagem proativa e baseada em dados para o risco humano se traduz em:

  • Redução de Perdas Financeiras: Incidentes cibernéticos custam caro, não apenas em recuperação e multas, mas em interrupção de negócios e perda de receita. Mitigar o risco humano é mitigar perdas diretas e indiretas.
  • Proteção da Reputação e Confiança do Cliente: Um incidente causado por falha humana pode erodir a confiança de clientes, parceiros e investidores, com consequências duradouras para a marca.
  • Eficiência Operacional: Menos incidentes significam menos tempo e recursos desviados para remediação, permitindo que as equipes se concentrem nas atividades de core business.
  • Conformidade Regulatória: Ações de conscientização e treinamento mensuráveis podem ser evidências cruciais para atender a requisitos regulatórios e reduzir a exposição a multas.
  • Retorno sobre o Investimento (ROI) Otimizado: Ao direcionar investimentos em conscientização e treinamento para onde eles são mais necessários e eficazes, a organização maximiza o valor gerado por cada dólar investido em cibersegurança. Não se trata necessariamente de gastar mais, mas de gastar melhor.

Uma gestão eficaz do risco humano demonstra um compromisso com a resiliência organizacional, protegendo os ativos críticos e garantindo a sustentabilidade do negócio a longo prazo. O CISO, nesse contexto, não é apenas um técnico, mas um líder que compreende a intersecção entre tecnologia, pessoas e estratégia empresarial.

Uma nova era na gestão do risco humano

É inegável que o fator humano continuará sendo um dos maiores desafios na cibersegurança. No entanto, é hora de abandonarmos a complacência e o “achismo” que caracterizam muitos dos programas de conscientização atuais. Precisamos transcender a superfície e mergulhar na complexidade do comportamento humano, munidos de dados e de uma compreensão profunda de nossas equipes.

O desafio é grande, mas a recompensa é ainda maior: uma cultura de segurança robusta e proativa, onde os colaboradores são os pilares mais fortes da defesa cibernética, e não o elo mais fraco. Ao adotarmos uma abordagem estratégica, baseada na mensuração e em intervenções dirigidas, transformamos cada indivíduo em um defensor ativo, capacitando a organização a enfrentar os desafios digitais do futuro com confiança e resiliência. O futuro da cibersegurança reside em nossa capacidade de conhecer, capacitar e empoderar nossas pessoas.

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Glauco Sampaio
Glauco Sampaio
Profissional da área de Segurança da Informação, Gestão de Riscos e Prevenção a Fraudes atuando desde 1999 em empresas de grande porte do mercado financeiro nacional (Bancos: Santander, Votorantim e Original, e Cielo) e também em empresa de mídia (iG e Editora Abril). Gestor desde 2005 sendo responsável pela estratégia, operação e gestão de áreas de segurança da informação.
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